Médico mestre em Filosofia e advogado especialista abordam polêmica
Na tarde de segunda-feira (2), após passar mal dentro de um ônibus em frente ao Instituto Nacional de Cardiologia (INC), em Laranjeiras, Zona Sul do Rio, o fotógrafo Luiz Cláudio Marigo, de 63 anos, morreu.
O fotógrafo, vítima de um infarto, desmaiou dentro do coletivo e o motorista, avisado pelo cobrador, buscou auxílio no INC. Ao chegar ao local, que enfrenta greve de servidores federais, receberam a informação de que o hospital não possui emergência. O enterro do idoso foi feito no Cemitério São João Batista, em Botafogo, às 17h desta terça-feira (3).
Os familiares do fotógrafo estariam acusando o INC de negligência. Segundo os parentes de Luiz Cláudio Marigo, o hospital teria se recusado a prestar atendimento à vítima. O motorista do ônibus onde o fotógrafo passava mal teria parado em frente ao hospital que é referência em doenças do coração no Rio de Janeiro, mas o INC teria informado que o atendimento ao idoso somente poderia ser realizado uma ambulância do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu).
De acordo com testemunhas do ocorrido, nenhum profissional da saúde do INC foi ao ônibus prestar socorro à vítima, apesar de o instituto ter sido comunicado do que estava acontecendo. O primeiro atendimento ao idoso teria sido feito por funcionários do Samu que estavam levando outro paciente para o INC. Uma tentativa de reanimação teria sido realizada, sem sucesso.
Ética médica: “O problema está desde o começo”
Para o cardiologista Luís Roberto Londres, que dirige a Clínica São Vicente e é mestre em Filosofia, os hospitais não estão desempenhando plenamente seus papéis. No caso do INC, o médico acredita que independentemente de qualquer coisa, a situação do paciente deveria ter sido tratada com mais cuidado. “Independentemente de ter ou não emergência, se uma pessoa chega ao hospital em um estado em que ela deveria ser vista, a obrigação absoluta seria ter atendido. Medicina é uma atividade social e humanística que tem em sua base fazer o bem a terceiros”, afirma.
Medicina é um segmento de saúde. Quando você pensa sempre em dinheiro ou negócios, você está pervertendo a nossa missão
O médico critica o que chama de ideia mercadológica que existe na prática da medicina hoje em dia. “Eu tenho horror à palavra mercado, porque eu só conheço dois outros mercados de seres humanos: a prostituição e a escravatura. Medicina é um segmento de saúde. Quando você pensa sempre em dinheiro ou negócios, você está pervertendo a nossa missão, que é a de atender seres humanos”, diz.
Luís Roberto Londres diz ainda que no passado, os grandes médicos adquiriam renome pelo serviço de pesquisa e ensino ou/e pela atividade beneficente, mas que hoje em dia isso está sendo corrompido. E lembra também da pesquisa realizada há poucos anos pelo Ministério de Saúde que avaliava o Rio como a pior capital do país em atendimento pelo Sistema Único de Saúde. No Índice de Desempenho do SUS (IDSUS), lançado em março de 2012, o Rio ficou com nota 4,33. O IDSUS 2012 levaram em conta dados sobre saúde básica, ambulatorial, hospitalar e de emergência repassados pelos municípios a organismos como o IBGE e o Ipea entre 2008 e 2010.
O médico lembra ainda que quando se formou, existiam no estado do Rio quatro escolas de medicina, todas públicas. Atualmente, o estado conta com 17: as quatro públicas e as demais todas privadas. Para Londres, o problema está desde o começo “Eu milito na saúde privada, mas eu sou contra as distorções que podem acontecer. Muitas vezes as instituições e os profissionais procuram seus ganhos, e não os ganhos de quem deveriam atender. A formação médica hoje está muito fraca, só se quer passar o aluno adiante”, avalia.
Recentemente, dos 2.843 recém-formados em medicina que fizeram o exame do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) em 2013, 59,2% foram reprovados. O médico aponta para o fato de que o índice de reprovação dos estudantes de escolas privadas (71%) era muito maior que os das escolas públicas (33,9%). “Isso evidentemente quer dizer alguma coisa, mas o Ministério da Saúde não faz nada”, critica.
Londres fala também do relacionamento entre médico e paciente estar precarizado. “A medicina diagnóstica está na conversa com o paciente: o bom médico tem 90% de chance do fazer o diagnóstico correto conversando com o paciente. Ele escuta o paciente e ouve a história completa, não só essa historinha de dez minutos que acontece nas consultas hoje em dia. Cada vez mais exames complementares são pedidos sem o menor cuidado, simplesmente para substituir a conversa. O paciente acaba não sendo visto como uma pessoa”, critica.
Negligência médica
De acordo com o advogado Paulo André Messetti, mestre em bioética e atuante na área de direito à saúde, são cada vez mais frequentes as reclamações referentes ao erro médico no Brasil. “Trata-se de um problema estrutural, de falta de investimentos e de comprometimento do Estado e dos atores da saúde, pública e privada, na prestação satisfatória dos serviços de saúde. As políticas públicas de saúde devem ser vistas e realizadas como prioridade política do Estado”, diz.
As políticas públicas de saúde devem ser vistas e realizadas como prioridade política do Estado
Apesar de o caso do INC estar trazendo à tona a questão da negligência médica e da omissão de socorro, pouco é discutido sobre isso na sociedade e o discurso sobre o assunto acaba se tronando superficial. Messetti explica que negligência médica é a omissão do profissional da medicina com relação aos atos médicos necessários à salvaguarda dos direitos e da vida do paciente. “Caracteriza-se pela falta de ação, pela inércia ante as exigências das circunstâncias do fato”, explica.
O caso do INC traz à memória outros casos que foram bastante polêmicos. No final de 2012, a falta de um neurocirurgião escalado para cumprir plantão fez com que Adrielly dos Santos Vieira, de 10 anos, baleada na cabeça na noite do dia 24, ficasse oito horas esperando para ser operada, e viesse a óbito. Na época, o secretário municipal de Saúde, Hans Dohmann, determinou a instauração de um inquérito administrativo para apurar a ausência do neurocirurgião Adão Orlando Crespo Gonçalves no plantão de Natal do Hospital Salgado Filho, no Méier, Zona Norte do Rio. O neurocirurgião acabou sendo afastado de suas funções e indiciado por omissão de socorro pela 23ª DP (Méier).
O advogado explica que um médico que é identificado como negligente pode ser punido em duas esferas: a moral e a legal. De acordo com Messetti, a primeira se refere ao contexto profissional, enquanto que a segunda se resume aos âmbitos penal e civil.
Um médico, se constatada a negligência após processo ético-disciplinar junto ao Conselho Regional de Medicina, órgão colegiado de fiscalização profissional, pode sofrer penas profissionais. “As punições podem ser de advertência confidencial em aviso reservado, censura confidencial em aviso reservado, censura pública em publicação oficial, suspensão do exercício profissional em até 30 dias, ou até mesmo a cassação do registro profissional”, enumera o advogado.
Messetti explica ainda que, identificada a negligência, o Ministério Público pode aplicar a ação penal correspondente ao crime culposo, na maioria do caso de lesão corporal ou homicídio. “A pena para a lesão corporal culposa é de detenção de dois meses a um ano, com agravação de um terço da pena nos casos em que o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as consequências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante. Já a pena para o homicídio culposo é de detenção de um a três anos, com a mesma agravante de pena de um terço nos casos citados”, explica.
Esclarecendo ainda sobre a postura ética no exercício da medicina, Messetti diz que em situação de emergência todo médico tem o dever profissional, moral e legal de atender qualquer paciente, seja ele atendido na rede pública ou na rede privada de assistência à saúde. “Se houver esse risco à vida ou à saúde do doente, além da punição disciplinar na sua negativa de atendimento, poderá estar configurado ainda o crime de omissão de socorro se estiver presente e puder agir e não o faça, conforme o art. 135 do Código Penal”, explica.
Órgãos oficiais se posicionam
O Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj) se posicionou sobre o caso em uma nota informando apenas que irá apurar o caso e garantindo que o atendimento na emergência e urgência dos hospitais federais estaria acontecendo normalmente, assim como aos pacientes com câncer e com doenças crônicas.
O presidente do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro (Sinmedrj) disse lamentar profundamente o ocorrido e considera o caso como mais um exemplo da crise na saúde pública do Rio de Janeiro. “Nós estamos tentando esclarecer esse caso primeiro com a equipe médica. Não há razão para que os médicos do hospital deixassem de atender esse paciente”, disse.
Autor: Rafael Gonzaga, do Projeto de Estágio do JB